sábado, 10 de dezembro de 2016

A biblioteca de Marilyn Monroe e a sexualização do esteriótipo da "loira burra".


 "Esse é o problema, um símbolo sexual torna-se uma coisa. Eu odeio ser tratada como uma coisa. Mas se eu vou ser o símbolo de algo, eu prefiro ser do sexo do que de algumas outras coisas que eles nos usam como símbolo." - Marilyn Monroe, 1962.


Quando Norma Jeane Mortenson, mais conhecida pela alcunha de Marilyn Monroe, morreu em Agosto de 1962, além de fãs inconsoláveis, escândalos sexuais envolvendo o presidente dos Estados Unidos e teorias da conspiração sobre a causa da sua morte (quem tem certeza de que ela foi assassinada dá um high five aqui), ela também deixou uma biblioteca com mais de 400 livros num dos cômodos da sua mansão. Esse último legado surpreendeu todo o mundo quando foi divulgado pela imprensa - uma mulher?? bonita??? ela lia??? e provavelmente leu mais que eu??? QUÊ?.

A razão da surpresa geral com a revelação de que Marilyn Monroe poderia, de fato, ser uma intelectual, vem da sua filmografia e da persona cuidadosamente fabricada por Hollywood para a atriz (e inicialmente, aprovada por ela mesma), criada a fim de atrair a audiência masculina para o cinema. A "personagem" Monroe centrou-se em seu cabelo loiro e nos estereótipos associados a ele, muito fortes na época, especialmente a estupidez, ingenuidade, disponibilidade sexual e artificialidade. Ela costumava usar uma voz ofegante e infantil em seus filmes, e em entrevistas dava a impressão de que tudo o que ela dizia era "totalmente inocente e não premeditado".

Marilyn, contudo, não foi a única vítima da ideia criada pela sociedade de que uma mulher bonita e voluptuosa não poderia também ser abençoada com inteligência. Especialmente em Hollywood, o esteriótipo da "loira burra" bonita, ingênua e sexualmente liberal é um espectro que ainda assombra os roteiros de filmes. A perpetuação da ideia de beleza é mais atraente numa mulher do que inteligência tem efeitos na vida real. Mulheres frequentemente são aconselhadas a se fingirem de burras para seus namorados ou prospectos amorosos - de fato, essa noção de que homens se interessam apenas por mulheres menos inteligentes que eles afeta até o desenvolvimento escolar de crianças e adolescentes; uma pesquisa conduzida em Portugal em 2014 mostrou que meninas de 14 anos ou menos frequentemente fingem ser "burras" para não intimidar os garotos em que estão interessadas¹.


Até hoje, grande parte dos filmes, principalmente os blockbusters, ainda são filmados sobre a perspectiva masculina, o chamado male gaze - que consiste do ponto de vista masculino nas artes visuais, quando a câmera coloca o público na perspectiva de um homem heterossexual, demorando-se sobre as curvas do corpo de uma mulher, por exemplo. A mulher é exibida geralmente como um objeto erótico tanto para os personagens no filme quanto para o espectador o assistindo. O homem emerge como o poder dominante dentro da fantasia criada do filme e a mulher é passiva ao olhar ativo do homem. A persona de Marilyn Monroe foi criada principalmente para  esse olhar masculino, e nos seus filmes ela normalmente interpretava "a garota", que é definida apenas por seu gênero. Seus papéis eram quase sempre dançarinas, secretárias, ou modelos, ocupações onde "a mulher está em exibição, lá para o prazer dos homens"², e essa repetição de papéis dificultou que ela fosse considerada uma atriz séria ao longo de sua carreira.

A incredulidade da mundo com o fato de que Marilyn, por trás de suas curvas e cabelos platinados, pudesse ser  um ser humano pensante e sensível o suficiente para amar  e colecionar literatura, mostra como o papel de mulher bonita e sem conteúdo, o esteriótipo da loira burra, a perseguiu até o fim da vida. Se os homens preferem as loiras - como no filme estrelado por Monroe em 1953, Hollywood, independentemente da cor de cabelo, nos prefere burras.

Obs: Pra quem se interessou, aqui estão os 430 livros que a Marilyn possuía em sua biblioteca (os títulos estão em inglês).

Referências:
1.Girls feel they must 'play dumb' to please boys, study shows


2.Página Marilyn Monroe na Wikipedia.



quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A Síndrome Rory Gilmore, ou crianças prodígio que se tornaram adultos medianos.

"Quem liga se eu sou bonita se eu perder nas provas?"

(Sim, esse vai ser mais um texto dos inúmeros que surgiram após o revival de Gilmore Girls, porque aparentemente toda a internet está obcecada por essa série. Contém spoilers sobre a temporada nova.)



Rory Gilmore sempre foi um floco de neve especial. Já havia lido todos os clássicos russos com 12 anos; enquanto outras crianças sonhavam com viagens pra Disney, seu maior almejo era entrar em Harvard, e quando terminou o ensino médio, foi prontamente aceita em várias faculdades de prestígio - para então depois de toda uma vida obcecada por Harvard, trocá-la por Yale, para a incredulidade desta que vos fala.

No revival e mais recente temporada da série, contudo, vemos uma nova face da Rory. Adulta, com 32 anos, desempregada, sem morada fixa, em um relacionamento tão insignificante que nem ela mesma se lembra que ele existe e tendo um caso com um homem comprometido. O que deu errado no meio do caminho para que uma garota brilhante se tornasse uma adulta medíocre?

Eu sempre me identifiquei com a Rory. Depois da Paris Geller (god bless her), ela é minha personagem favorita da série. Apesar de a situação atual dela parecer extremamente destoante da minha - ela na casa dos 30, viajada, em constante conflito amoroso; eu com 22 anos, mal saí do estado que moro e o máximo que experienciei de relacionamentos foi chorar lendo fanfictions de casais da ficção (só deus pode me julgar) - talvez eu nunca tenha me identificado tanto com a Rory como nessa temporada.

Usando um dos termos mais clichês da blogosfera (só atrás talvez de "a incrível geração de alguma coisa levemente condescendente"), a "Síndrome" de Rory Gilmore afeta 95% dos adultos que uma vez foram crianças inteligentes e com futuro promissor (eu inventei essa estatística. Eu não sei nada de cálculo). Eu fui uma dessas crianças. Minhas notas boas sem muito esforço, minha facilidade em aprender e todos os livros que eu devorava me deram um falso senso de confiança ao entrar na vida adulta. Ninguém me avisou que dentro da faculdade meu conhecimento extensivo de literatura vitoriana seria inútil e que eu seria apenas outro tijolo no muro. 

As expectativas das pessoas ao nosso redor e o medo de frustrá-las, a tendência a uma autocobrança de proporções astronômicas e uma dose de arrogância são catalisadores desse sentimento de inadequação que antigas crianças "prodígio" enfrentam quando jogadas no mundo real. Assim como Rory pensou em desistir do jornalismo por se sentir incapaz - e ter chegado a trancar a faculdade para "se encontrar", como manda o livro de regras de todo jovem branco privilegiado - e não boa o suficiente, todo semestre eu era acometida por uma crise de "que inferno eu estou fazendo nessa faculdade eu vou ser a pior médica do mundo não tô conseguindo respirar send help".

Talvez nada tenha dado errado na trajetória de vida da Rory Gilmore. Talvez a regra seja realmente crescer e perceber que não somos floquinhos de neve especiais e que a realidade é dura com todos nós, independente do futuro brilhante que fomos prometidos durante a infância, e que as pessoas que alcançaram seu sucesso  supostamente merecido, as Paris Gellers do mundo, são apenas felizes excessões.

Independente do futuro planejado pela Amy Sherman-Palladino para essa nova versão da Rory Gilmore, - falível, mais humana - a criadora de Gilmore Girls mais uma vez conseguiu expressar através de suas personagens a natureza mutável das personalidades e relações humanas do seu público alvo. Nós,  uma vez adolescentes perspicazes e confiantes, e agora adultos aflitos e inseguros quanto ao que o futuro traz, agradecemos.